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SOUNDTRACK: COMPARTILHANDO PRESENÇAS pela música

Por MathVaz


Não sei vocês, mas para mim é generalizado. Vivemos uma epidemia das mais cruéis e imperceptíveis. Ela ronda nosso mundo e entra em cada uma de nossas vidas. Ela usa máscara, e quando você percebe, você também está usando uma. As pessoas que você encontra no dia a dia começam a usar também. E ninguém mais se conhece.


    Soundtrack é um quadrinho produzido por Guilherme Match e Rashid, publicado pela editora JBC.
Soundtrack é um quadrinho produzido por Guilherme Match e Rashid, publicado pela editora JBC.

Bem-vindo à distopia da desimportância, da distância e dos muros. Pois hoje, conseguir estar presente é um desafio, se conectar com as outras pessoas é um empecilho e conhecer o outro é cada vez mais difícil.

Mas não se engane. A ausência não quer dizer silêncio. E o mundo distópico de Soundtrack está repleta de ruídos. É um vai e vem de pessoas, vivendo suas vidas, mas sem nunca parar para se conhecer. Podemos achar que se os ruídos sonoros são um problema, o silêncio é a solução. Estamos errados novamente.

E é isso que o protagonista da história, Mayk, nós ensina, pois ele tem uma missão. E ela vem através da música e do compromisso de ser um MC num mundo onde verdadeiramente se conectar é um desafio. Não são mais o de chamadas perdidas, mas da ausência das próprias chamadas. Talvez você queira ligar para sua mãe depois de ler esta história cheio de combates, contemplações e reflexões.

Agora imagine que neste mesmo mundo há uma tecnologia nova, experimental, e que pode verdadeiramente combater a nossa epidemia. Ela se chama R.E.A.L, Recurso Experimental de Alinhamento do Lobo-frontal, e é capaz de criar uma experiência terapêutica compartilhada entre as pessoas através da música, criando uma projeção baseado no subconsciente de seus usuários, um mundo que nos atravessa da cabeça aos pés.


    Soundtrack tem miolo preto e branco e conta com 200 páginas.
Soundtrack tem miolo preto e branco e conta com 200 páginas.

Mayk é o guia dessas projeções, um MC que viu a oportunidade de, com sua habilidade com as palavras, levar verdadeiras conexões às pessoas. Através de sessões usando o R.E.A.L, ajuda os outros a descobrirem seus dilemas e enfrentá-los. Para que no mundo externo, tenham o ânimo e a coragem para lidar com aquilo que mais o afetam. Mas não é um trabalho fácil. Não é só composição de letras e beats, de tocar uma música e esperar que as pessoas entendam. Quando eu falo que se trata de criar uma experiência compartilhada, é compartilhada mesmo. É um mergulho na vida das pessoas. É estar presente, focado e disposto. Ao mesmo tempo que lida com suas próprias inseguranças e dilemas de ser um MC, de seu compromisso com a arte e consigo.

Aposto que agora você se vê um pouco em Mayk. Além de carregar seus próprios problemas, medos, compromissos e responsabilidades, ainda precisa estar presente na vida de outras pessoas. Quase como um cubo mágico, você mexi aqui, desalinha lá. E você não tem nem tempo para treinar nele.

Hoje tentamos ainda mais controlar um tempo que anda cada vez mais escasso. Preenchendo os espaços livres do nosso dia a dia buscando uma produtividade incomum ao metabolismo do nosso próprio corpo. Uma armadilha parte criada por nós, parte fruto de um sistema que domina até nosso sonhos, permeando-o com individualidade. Assim, na correria do dia a dia, esquecemos o outro, substituído por reações no Instragram ou rolagens no Tiktok. Criando com o tempo uma insensibilidade que passa a ser o que define nossos relacionamentos.

Substituindo a presença por experiências individuais.


    Soundtrack é um dos melhores lançamentos de 2024 e adapta algumas músicas do álbum Tão Real (2020), do rapper Rashid.
Soundtrack é um dos melhores lançamentos de 2024 e adapta algumas músicas do álbum Tão Real (2020), do rapper Rashid.

Ao focarmos em experiências cada vez mais individuas, até como forma de autopreservação, esquecemos do que nossos amigos, familiares e companhias estão passando. Esquecemos que conhecer outras pessoas, compartilhar jornadas juntos, mesmo que dure um dia, semanas ou meses apenas, é uma das maiores delícias da vida. Se entender nos desafios dos outros, ser entendido e reconhecido em sua própria jornada de superação e enfrentamento. Estar de fato presente, bem ali, naquele momento chave na vida de outra pessoa, alimenta a alma e o espírito, como uma boa melodia de música. Sentir o alinhamento que uma boa conversa pode te trazer com o outro é como uma boa batida de rap sincronizar com as batidas do seu coração.

Alegria,

tristeza,

força,

ânimo,

raiva.

E quando vem a letra? Quando aquelas palavras rimadas, que se encaixam perfeitamente na métrica, parecem dizer aquilo que você precisa escutar, seja te machucando, seja te libertando. Mas são palavras que precisamos escutar naquele momento. Palavras que te dão coragem e energia. Porra, você sabe do que eu to dizendo! E você sabe muito bem como é compartilhar estes mesmos sentimentos com os outros, através da música, seja botando para tocar num sábado de manhã junto do seu amigo, ou fazendo aquele almoço junto com outra pessoa, cantando a letra com todo o ar do seu pulmão. Conexões verdadeiras criadas através do que? Da música… da arte!

É certo que a arte pode muito bem ser apreciada em sua solitude. Mas também é certo que compartilhá-la com alguém é uma das maiores alegrias da vida. Não que eles sintam da mesma forma que você sente uma série, um filme, uma música ou quadrinho. Mas é como se dois mundos pudessem compartilhar por si só um outro mundo. E nesse mundo consigam se conhecer, conversar, se emocionarem juntos. Descobrir coisas juntos. Pode ser um problema que o outro nem imaginava estar passando, ou uma atitude de coragem, respeito e compromisso que te inspire.

De mundo em mundo, de música em música, de jornadas compartilhadas em jornadas compartilhadas, nosso protagonista Mayk vai se inspirando e refletindo sobre si. Descobrindo seus próprios dilemas e sabendo enfrentá-los também. Descobrindo os desafios dos outros e sabendo ajudar também. De um deserto numa ampulheta, passando pelo quarto de uma criança criadora de mundo e de um velho oeste rodeado de lembranças e monstros, até a caminhada de uma mãe em luto, mas compromissada. Aqui guia e viajante se misturam. Ora Mayk é o guia, o que sempre está por perto e vai à frente, ora ele é o viajante, encontrando nos outros as atitudes de resolver suas próprias inseguranças como um MC. O peso de ser um mestre que pode muito bem esquecer o motivo por trás de fazer o que faz, de tão árdua que é a caminhada.

Se por um momento em Soundtrack acompanhamos outras pessoas imersas no R.E.A.L, descobrindo quais são suas próprias jornadas, o que precisam mudar e enfrentar, por outro lado é só pelo Mayk que entendemos o compromisso de pegar tudo aquilo que passamos, nas experiências compartilhadas, e mudar no mundo externo. É sair daquela sessão de R.E.A.L com a tarefa de pegar os ensinamentos e transformar a vida e o mundo que vivemos. É se engajar. É levar a sério. É ter foco na missão.


    Rashid (esquerda) assina o roteiro e Guilherme Match (direita) assina o roteiro e o desenho.
Rashid (esquerda) assina o roteiro e Guilherme Match (direita) assina o roteiro e o desenho.

Soundtrack, de dois gigantes – um dos quadrinhos, que é o Guilherme Match, e outro do rap, o Rashid, que tem estreado no mundo dos quadrinhos – , é um convite para você sentar com alguém e escutar uma música juntos. Não importa se é num quarto ou no metrô, o importante é compartilharem momentos juntos, seja conversando ou saboreando o silêncio um do outro, desfrutando da companhia.

Conhecer um outro mundo que pode ou não ser próximo do seu, mas que sem dúvida é um mundo. É também tirar a máscara que carregamos muitas vezes no dia a dia, escondendo sentimentos e pensamentos, na busca de passa despercebido, sendo que o que mais queremos é sermos reconhecidos. E só seremos reconhecidos quando sentirmos a presença dos outros em nossa vida, que também é sentir nossa própria presença. Mas para sentirmos nossa própria presença nesse mundo, não podemos caminhar sozinhos, precisamos do outro, do outro te notando, também querendo saber um pouco do mundo que você é.

Até a próxima música!

Até o próximo quadrinho!


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