por Filipe Rodrigues.
24/11/2022
Revolta da Vacina - Peste, injustiça e frustração.
Como carioca, posso dizer que o Rio de Janeiro não é para amadores. Muitos acontecimentos da história recente da cidade nos provam isso mas, ao voltar no tempo, percebo que peculiaridades estão na pedra fundamental da Cidade Maravilhosa. Desde muito cedo a Revolta da Vacina era um evento histórico que atiçava minha curiosidade. Saber que o povo pobre lutou contra a vacinação compulsória que o governo da época instituiu na tentativa de controlar a proliferação de doenças me causava estranheza. Sempre acreditei que as vacinas eram boas e que todo esse movimento de resistência era apenas uma demonstração de ignorância. Como sempre, a história pode ser mais complexa do que pensamos. A Revolta da Vacina foi a culminância de um projeto de higienização urbana que causou muita frustração nas camadas mais pobres da antiga capital da república.
Frustração, este foi o sentimento que senti enquanto lia “A Revolta da Vacina” de André Diniz. A HQ segue a história de Zelito, jovem cearense que viaja para a capital nacional atrás do sonho de se tornar um cartunista em um jornal de destaque, ele só não contava com todos os empecilhos que encontraria pelo caminho e uma cidade prestes a explodir. O protagonista, um homem que tenta lidar com a pressão do seu pai, a sombra do seu irmão morto e a sua própria arrogância, é uma figura difícil de engolir. Suas escolhas são duvidosas e acabam causando o sentimento de frustração que persegue o personagem durante toda sua caminhada. Frustração essa que era dividida com a população do Rio de Janeiro do início do século 20, população que tinha de lidar com o bota-fora promovido pelo prefeito Pereira Passos, as doenças que assolavam as ruas e o remédio amargo do sanitarista Oswaldo Cruz. Aos poucos essa frustração toma conta da narrativa ao ponto de literalmente explodir num frenesi popular, a Revolta da Vacina. Ler essa história durante a pandemia da covid e não fazer paralelos com o que aconteceu, e ainda acontece, é uma tarefa quase impossível. Porém a frustração demonstrada em parte da nossa população nesses dois anos é diferente daquela do início do século passado. Hoje pessoas se frustram por perder privilégios que oprimem minorias e se acham no direito de reivindicar a manutenção do status quo. Logo, a frustração pode ser um elemento que movimenta a sociedade. O que fazer com esse sentimento é o ponto a ser discutido.
Ao contrário da frustração demonstrada na narrativa e em seus paralelos, a arte não nos decepciona em nada. A xilogravura cria ambientes oníricos e ao mesmo tempo reais, paradoxo que ajuda a nos imergir mais nesse ambiente urbano peculiar. A HQ parece uma enorme literatura de cordel, ao passo que as charges de autoria de Zelito são feitas emulando desenhos a lápis, separando o real daquilo que foi produzido pelo protagonista. Inclusive, esse detalhe nos mostra o estilo artístico de Zelito que é tão criticado nos diálogos. Aliás, diálogos que são curtos mas que nos explicam o contexto sem serem expositivos e nos colocam no caldeirão cultural que era a principal cidade do país. Além desses elementos, a presença dos jornais diários nos mostram o crescimento da mídia no Brasil, uma bolha onde todos queriam ter a atenção do leitor. A presença, quase que onipresente, dos vetores das doenças (mosquitos e ratos) nos lembram que o perigo está logo ali.
O livro também conta com posfácio do professor e historiador Luiz Antônio Simas, que nos aprofunda no contexto histórico abordado e com reproduções de charges de jornais da época. Revolta da Vacina, de André Diniz, é uma HQ que nos mostra que a história é um ciclo e a frustração pode ser a força motriz de movimentos que podem mudar a sociedade, para bem ou para mal.
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